A maior contribuição do Nordeste para o combate à desertificação e à crise alimentar mundial está nas mãos de 2 milhões de agricultores familiares da região. Menos dependente de produtos químicos, do petróleo e de máquinas, o sistema de cultivo deles baseia-se em princípios mais adaptáveis a um modelo voltado para a preservação do meio ambiente e ao aumento da produção de alimentos. No Sertão nordestino, milhares de homens e mulheres da zona rural já fizeram a descoberta da chamada agroecologia e têm enfrentado com altivez uma fome que atinge 7 milhões de sertanejos. A agroecologia não utiliza nenhum tipo de fertilizante químico ou agrotóxico, não agride o meio ambiente, não desmata e ainda alimenta a biodiversidade. Pelas experiências de sucesso e pela ousadia em quebrar uma cultura de cultivo convencional da terra, os agroecologistas da caatinga gozam de autoridade para falar hoje, Dia Mundial de Combate à Desertificação e à Seca.
Antônio Bispo e sua família exibem os frutos produzidos com técnicas da agroecologia, em Bodocó (PE) |
Uma equipe do Diario percorreu 5.400 quilômetros por seis dos nove estadosdo Nordeste para revelar quem são esses homens e mulheres. Durante 30 dias, a reportagem investigou o impacto social das iniciativas agroecológicas sobre as pessoas, inclusive jovens e crianças. Este caderno especial mostra a mudança do cotidiano de uma gente que investe na diversificação da roça com frutas e hortaliças orgânicas e que conseguiu melhorar a renda e a nutrição dos filhos. Os agricultores apostam nas vantagens de adubos naturais, acreditam no reflorestamento da mata nativa como forma de ampliação da biodiversidade e confiam no potencial da pecuária regional, na criação de galinhas caipiras e de abelhas para o desenvolvimento sustentável. A agroecologia do Sertão, assim como a bem-sucedida produção de regiões exportadoras de frutas de Petrolina (PE), merece ser reverenciada. Está florescendo em pequenos pedaços de terra que não interessam ao agronegócio e avança em regiões nas quais o senso comum diz que nada prospera.
A prática agroecológica utilizada nos sítios do Nordeste tem aprovação mundial. Ajudam a combater a degradação e a desertificação do solo - um processo que leva a terra à infertilidade e que tem como principais causas o clima e a ação indevida do homem. Cientistas de 60 países e das agência das Nações Unidas e do Banco Mundial endossaram, de forma indireta, as técnicas dos agricultores do Nordeste em abril deste ano, com o Relatório Internacional sobre Ciência e Tecnologia Agrícola para o Desenvolvimento (IAASTD, sigla em inglês). "É preciso trabalhar com a natureza para produzir mais e melhores alimentos", afirma o documento.
Os autores do IASSTD, espécie de Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC) da agricultura, querem multiplicar experiências como a da família de seu Antônio Bispo, de Bodocó (Sertão de Pernambuco, a 557 quilômetros do Recife). Ele, a mulher, filhas e o genro plantam sem usar veneno, diversificam a produção, colhem e vendem mais do que feijão e milho. Levam à mesa todos os dias cenoura, folhagens, beterraba, laranja, manga, banana, mamão. "E ainda me livrei das contas na bodega", comemora Bispo. Como outros agricultores agroecológicos, colhem os demais frutos: aprenderam sobre organização social. Ganharam novo status na comunidade, conquistaram mais auto-estima e influenciam o ensino nas escolas de seus municípios.
"É hora da gente começar a rediscutir o processo de produção e começar um trabalho de reeducação produtiva do Nordeste. O agricultor familiar tem um papel importante nisso. Temos de pensar numa agricultura que valorize as especificidades regionais e que se preocupe com a questão ambiental", disse ao Diario o coordenador geral do Programa Nacional de Combate à Desertificação (do Ministério do Meio Ambiente), José Roberto Lima, adiantando que lançará hoje, em Brasília, um livro de experiências comunitárias desenvolvidas pelo governo federal no semi-árido. Lima é um dos especialistas em mudanças climáticas e em segurança alimentar no Brasil ouvidos pela reportagem. Entre eles também o presidente da Agência da ONU para a Agricultura e Alimentos (FAO) no Brasil, José Tubino, e o cientista Eduardo Assad, pesquisador-chefe da Embrapa Informática Agropecuária e principal assessor da agricultura da equipe do IPCC do Brasil.
A pesquisa e as entrevistas foram completadas com uma profunda apuração de campo. A equipe do Diario percorreu dezenas de propriedades rurais onde se pratica a agroecologia. Todas elas situadas numa área onde as secas são mais intensas e que é conhecida pelos técnicos como "miolão do semi-árido", abrangendo terras da Bahia, Ceará, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte. Para mapear a área a ser percorrida, teve a consultoria de algumas das mais respeitadas ONGs do setor (Caatinga, Centro Sabiá, Diaconia, Ider e Moc) e contou com a ajuda de técnicos da Embrapa, Emater e do Projeto Dom Hélder (do Ministério da Agricultura). O esforço buscou trazer para o Dia Mundial de Combate à Desertificação e à Seca as histórias dos produtores agroecológicos da caatinga nordestina - no anonimato, e em condições adversas, eles estão plantando ecolhendo de uma forma que ajuda o presente e o futuro do planeta.